18 dezembro, 2010

TV por assinatura versus TV aberta – Parte 3: HBO e a arte de “não ser TV”

A TV a cabo nos EUA surgiu numa época em que o país vivia o clima moralista dos anos 1980, com um presidente republicano no poder e anunciantes boicotando programas “de mau gosto”. Assim a HBO já começava com uma vantagem competitiva: tinha carta branca para cruzar a fronteira do “aceitável” pelos padrões da conservadora middle-America, já que sua renda não vinha da publicidade e sim dos assinantes.

Enquanto TV a cabo transformava o que as pessoas assistiam na TV, o videocassete e o controle remoto transformavam a forma como as pessoas assistiam TV. E quem eram estes early adopters brincando com o controle remoto, assinando a TV paga, e alugando/ comprando vídeos? Boa parte deste grupo era formado pelo que se convencionou chamar de yuppies (young urban professionals). Estes jovens tinham nível superior, eram consumistas e entusiastas de novas tecnologias. Enquanto zapeavam, sua atenção acabou sendo capturada pela qualidade e sofisticação da programação da HBO.

A partir dos anos 1990 a empresa começou a investir em séries – o caminho para fidelizar o público. Com Larry Sanders Show (1992-98) e Oz (1997-2003), estabeleceu sua reputação de dar a roteiristas e produtores liberdade criativa para produzir séries polêmicas e inovadoras, o tipo que não sairia do papel na TV aberta.

Mas no final dos anos 1990 a concorrência tinha se intensificado, e para manter as exorbitantes verbas de produção era preciso trazer mais assinantes. Em 1998, foi ao ar a série que é um de seus maiores sucessos: Sex and the City (1998-2004), seguida de Sopranos (1999-2007) e Six Feet Under (2001-05). Estas séries quebraram paradigmas e trouxeram para a TV um tipo de prestígio e respeito da crítica que até então era reservado para o cinema. Todo este buzz contribuiu para definir a HBO como sinônimo de “televisão de qualidade”, o que acabou se tornando seu posicionamento de marca. A quantidade de prêmios recebidos sem dúvida contribuiu para cimentar esta imagem. Nos Emmys, o canal evoluiu de 6 indicações e 3 vitórias em 1988 para 86 indicações e 20 vitórias no ano 2000.

Como uma forma de oficializar seu compromisso com a qualidade e tirar proveito da popularidade de seus produtos, a HBO lançou em 1996 seu legendário slogan: It’s not TV, it’s HBO. Ao se auto-definir como “não televisão”, a HBO estava se diferenciando do “resto”, colocando-se acima do que é considerado “televisão”. Valendo-se do momento, em que era o darling não apenas da crítica mas também de uma elite formadora de opinião, a empresa utilizou a clássica lei de Al Ries: “Se não puder ser o primeiro numa categoria,  invente uma nova. Se todos os outros são televisão, a HBO seria a primeira na categoria “não televisão”. Conferindo-lhe suporte neste argumento estavam: a crítica mundial, as legiões de fãs, os inúmeros prêmios recebidos e os produtores, roteiristas e atores que migravam do cinema para a HBO devido à liberdade até então só encontrada nos filmes independentes.
Se usarmos o mesmo argumento para a HBO, podemos compreender o quão atraente é o conceito de ‘It’s not TV’ para seus mais 35 milhões assinantes (na época). É como uma permissão para assistir TV sem ser olhado com desdém. O slogan HBO não apenas sugere que a marca diferencia-se da “TV comum”, mas que seus telespectadores também podem se diferenciar dos ‘telespectadores comuns”.
É interessante considerar o que a autora Jane Feuer, no livro sobre a prestigiada produtora MTM (de Hill Street Blues), comenta sobre o público da televisão de qualidade: “A audiência de qualidade consegue se diferenciar da grande massa, e assim pode assistir televisão sem culpa.”

Outra pesquisadora, Dorothy Hobson, defende que para atrair mais público, nada melhor do que gerar conversa, ou seja, burburinho, entre os fãs e na imprensa: Talking about what has happened in a TV program is essential to making it popular and part of the cultural capital of general discourse”. E sem dúvida a HBO soube tirar proveito desta capacidade de “gerar conversa” (sem o auxilio do Twitter, que só chegou em 2006).

Com o passar do tempo, a crítica começou a especular que o canal já não conseguia mais recriar seu próprio sucesso. Basear sua estratégia na qualidade dos programas deixou a empresa numa “situação claustrofóbica”, para parafrasear seu próprio presidente em 2002. Não existe uma fórmula para produzir shows de sucesso, e mesmo com pesquisa e planejamento o sucesso na TV é às vezes determinado por variáveis incontroláveis. Assim a empresa acabou “confinada” pela expectativa que criou com sua própria imagem e pelos altos padrões que estabeleceu.

Em março de 2004, sua nova campanha, It’s not TV, it’s H2O brincava com seu status de water cooler television devido ao costume de se reunir no trabalho ao redor do bebedouro para discutir o programa da noite passada). Premiado em Cannes, o comercial, mostra profissionais da indústria da água agradecendo à HBO por reaquecer suas vendas ao trazer de volta o bate-papo ao redor dos bebedouros nos escritórios.

O foco foi reajustado da qualidade de seus programas para sua capacidade de gerar conversa e aproximar as pessoas. Sem as graças do público e o aplauso da crítica, não há buzz. E sem buzz, consome-se menos HBO. O ajuste de foco da comunicação pode ser uma alternativa menos confinada, mas pode também forçar a empresa a concentrar mais esforços em gerar polêmica do que em realmente gerar produtos de qualidade. Nas palavras do crítico P. J. Bednarski, “a HBO é muito boa em nos convencer que é muito boa”. Mesmo que nem sempre seja tão boa assim.


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Trabalhos citados:
- Bednarski, P.J., Entrevista concedida em 9/Jul/2004.
- Bednarski, P.J., ‘It’s Only Television.’ Broadcasting and Cable, 7 September 2003.
- Hobson, D., ‘Soap Operas At Work’, E. Seiter, H. Borchers, G. Krentzner, E. Warth (Eds) Remote Control:Television, Audiences & Cultural Power. London: Routledge, 1982.
- Feuer, J.(Ed.). MTM ‘Quality Television’. London: BFI, 1984.
-Ries, A. and Trout, J., The 22 Immutable Laws of Marketing, HarperCollins, 1994.
-‘The Way of Success’, Interview with HBO’s CEO Chris Albrecht, Broadcasting and Cable, November 2002.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...